sábado, 29 de abril de 2017

A VISÃO MARXISTA DO ESTADO E DEMOCRACIA EM ‘CRÍTICA À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL’


          Atualmente, muitos estão escandalizados com o grau de descumprimento de vários preceitos constitucionais, os excessos jurídicos, a grave situação da democracia, o aumento da repressão policial entre outras preocupações existentes na sociedade brasileira. Por trás delas, uma verdadeira ‘fé’ no chamando ‘Estado Democrático de Direito’, nas instituições republicanas que temos e nos princípios legais conquistados pela nossa última ‘Carta Magna de 1988’, a Constituição Cidadã, como é conhecida.
            Por outro lado, os ortodoxos defensores da ‘legalidade’ creem que a atual ordem jurídica do Estado brasileiro pode se resolver com modificações no aparelho estatal, impondo um regime rigoroso de controle, disciplina e investigação permanente, particularmente sobre as organizações políticas e seus representantes eleitos sob a palavra de ordem: ninguém está acima da lei! As elites, os corruptos e seus partidos que governam (mesmo aqueles que se venderam aos ricos empresários), se arrogam em atacar as  perseguições e mitificar as instituições democráticas, tendo utilizado todas as artimanhas para se beneficiar da posição privilegiada que ocupavam (e ainda ocupam a imensa maioria deles)  nos altos escalões da república.
O entendimento mais profundo desse debate é encontrado na obra marxista “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel”, escrito em 1843. À época Karl Marx renunciava as visões hegelianas, criticava-as, e formatava uma concepção profunda sobre a sociedade. Sua visão era extirpar todos os preconceitos religiosos e míticos existentes no pensamento filosófico alemão a partir do modelo dialético hegeliano, resultante da crítica à metafísica anterior. A obra arranca de Hegel toda uma sistemática concepção do Estado e sua Estrutura, Direito, Estamentos e da Sociedade Civil, mas lhe impõe uma profunda crítica da visão mítica da sua ‘filosofia especulativa’, a qual partia do pressuposto de que a ‘IDEIA’, sua evolução, seu desenvolvimento e suas contradições, etc, moldavam a essência da realidade.
Assim, o pensamento de Marx adquire uma importância fundamental na crítica às velhas idéias seguidistas, crendices e míticas de um ‘Estado do Povo’ ou um ‘Estado a serviço de todos’, uma ‘democracia pura’ construída na evolução pacifica apenas dos debates das idéias, e seus reflexos nas instituições. Nele fica muito clara toda à sua concepção revolucionária da sociedade. O livro é um verdadeiro passo-a-passo, utilizando inúmeras passagens do livro ‘Princípios da Filosofia do Direito’ de Hegel, desmitificando cada parte, bem como reconhecendo os avanços trazidos pela visão dialética.

A SOCIEDADE CIVIL, DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO POLÍTICA

            Sempre somos instados a ver no Estado e seus dirigentes nossos representantes. Pelo fato de serem eleitos, deveriam pois representar o interesse de todos. Isso ocorre porque existe uma separação entre a Sociedade Civil (forma organizada do povo não estatal, privado), a outra organização privada da sociedade, a FAMÍLIA e o aparelho ESTATAL, sua burocracia e instituições. Hegel entende a Sociedade Civil e a família como ‘partes do Estado’, divididos apenas pelo conceito e não pela realidade como tal.
            Marx afirma: Família e Sociedade Civil são apreendidas como esferas conceituas do Estado e, com efeito, como as esferas de sua finitude, como sua finitude. É o Estado que nelas se divide, o que as pressupõe; e ele o faz, em verdade...A ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna imaginaria. Família e Sociedade Civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, nas especulação, isso se inverte”. Mais: “Não é o seu próprio curso de vida (Sociedade Civil e Família) que as une ao Estado, mas é o curso da idéia que as discerniu de si; e, com efeito, elas são a finitude dessa ideia; elas são determinações postas por um terceiro, não autodeterminações”.(Págs 35 e 36)
            Em outras palavras, para o pensamento marxista foi o próprio desenvolvimento interno da organização social que gerou essa separação e não o desenvolvimento conceitual ou imaginário dessa sociedade. Essa é sua aparência, reflexo do real. Naturalmente, ao pensar assim, Marx afirma sobre Hegel “A pura idealidade de uma esfera real só poderia, contudo, existir como ciência...O importante é que Hegel, por toda a parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da disposição política, faz o predicado. O desenvolvimento prossegue, sempre do lado do predicado”. (pag 38)
Posteriormente, em outras obras, Marx prova que o processo de separação entre sociedade civil, família e Estado se deu no processo do desenvolvimento da vida econômica, nas suas contradições internas. O produto conceitual é resultado, naturalmente, disso, e não o inverso. As instituições políticas são produtos passivos da sociedade, resultantes das lutas sociais e das forças delas resultantes. Ao mesmo tempo, Marx acrescenta um imenso avanço trazido pela concepção helegiana, a concepção ‘ORGÂNICA’ do Estado, pois mesmo considerando um desenvolvimento ideário, Hegel toma esses aspectos num todo:  “é um grande progresso tratar como organismo”.
Em geral, se toma os interesses gerais do Estado como os interesses da sociedade (família e sociedade civil), ou o que se chamaria de interesse público. Isso não passa de uma ilusão. O Estado, separado dos demais, é produto das inter-relações sociais (contraditória e divida tão quanto à propriedade privada em seu seio) e seu desenvolvimento, é, pois, apenas uma visão aparente, superficial, não completa. Na realidade, os dirigentes não podem representar senão tais contradições, as quais devem ser resolvidas dentro da própria sociedade numa intensa Luta de Classes.
Outra das formas de mitificação do Estado está a Constituição Política e a ideia de Democracia. Hegel pretende, com a ciência jurídica e sua evolução conceitual, dar à Constituição Democrática (mesmo que no caso, ele a veja mesmo numa monarquia) um meio de moldar o conjunto dos estamentos* sociais.
Numa passagem irônica, combatendo essa concepção, Marx afirma: “A democracia, em um certo sentido, está para outras formas de Estado como o cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião, a essência, o homem deificado como uma religião particular. A democracia é assim, essência de toda constituição política. O homem socializado com uma constituição particular é; ela se relaciona com as demais constituições como gênero com suas espécies, mas o próprio gênero aparece aqui como existência e, com isso, como uma espécie particular, em face das existências que não contradizem a essência. A democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com o seu velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem; e a existência humana, enquanto as outras formas de Estado como com o seu velho Testamento... a constituição política foi reduzida à esfera religiosa, a religião da vida do povo, o céu da sua universalidade em existência terrena de sua realidade”. (Pag 56 e 57)
Nesse importante raciocínio, fica claro que a ideia de uma Democracia no âmbito do Estado, é uma ficção. Não se pode existir ‘governo do povo’, pois, sendo um regime do Estado, esse é separado do povo. Na essência do estado está a separação, e só pode ser resolvida numa nova organização social em que o Estado deixe de existir enquanto tal. Até isso ocorre, a constituição democrática não passará de uma Bíblia para os crentes da democracia.

BUROCRACIA E PODER

Hegel atribui papel destacado à burocracia na administração do Estado. O exercício do poder, para ele, estaria liberto de excessos, se existisse uma ética nos representantes do Estado. Seria a função pública um ‘dever’, a vocação dos funcionários do Estado. Ao mesmo tempo, o exercício do direito das ‘corporações’(organismos de administração próximas da população) e uma rigorosa hierarquia estatal sob a tutela do poder soberano do monarca serviria para impedir “aristocracia e a dominação”.
Explicando o pensamento hegeliano, Marx afirma: “ A burocracia é o formalismo da sociedade civil. Ela é a ‘consciência do Estado’, a ‘vontade do Estado’, a ‘potência do Estado’...a burocracia deve, portanto, proteger toda a universalidade imaginaria do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginaria do interesse universal, seu próprio espírito” (pag 70). Mais: “Hegel nos dá uma descrição empírica da burocracia, em parte como ela realmente é, em parte segundo a opinião que ela tem de seu próprio ser”. (Pag70)
A concepção marxista desconstrói todo o mito de uma burocracia a serviço do povo. Embora reconheça o papel de serviços essenciais à vida da população, por serem instrumentos ‘públicos’ do Estado, não passam de ilusórias no sentido de escamotear a separação completa entre a sociedade e o próprio Estado.
Afirma: “A burocracia é o Estado imaginário ao lado do Estado real, particular, o espiritualismo do Estado...Por isso o espírito público do Estado, assim como a disposição política aparecem para a burocracia como uma traição do seu mistério. A autoridade é, portanto, o principio de seu saber e o culto à autoridade é a sua disposição”. (Pag72). “A supressão da burocracia só pode se dar contanto que o interesse universal se torne realmente – e não, como em Hegel, apenas no pensamento, na abstração – interesse particular, o que é possível apenas contanto que o interesse particular se torne universal.” (Pag 73)
É importante ressaltar que aqui Marx trata de toda legião de funcionários, em todos poderes da república, e estruturas de poder vinculadas ao poder centralizado. É como se fosse uma ‘capa protetora’ de uma estrutura erguida sobre a autoridade dos dirigentes, numa hierarquia concreta, para submissão imposta aos membros da sociedade. Não é da essência do ESTADO a proteção dos cidadãos, é, pois, o seu controle e imposição, tendo assim que constituir um conjunto de instituições burocratizadas e racionalmente constituídas, uma aparência diferente do que ele é realmente. O fim último é o poder!
Para o exercício do poder e atribuições fins do Estado, ou nas palavras de Marx, para a defesa da “propriedade privada como a categoria universal , o liame Universal do Estado” (pag130), é preciso um conjunto de leis, que, regulamentam a vida social, passam a ter uma vida ‘espiritual’ própria, parecendo estar acima da própria sociedade. Essa lei garante aos cidadãos os ‘direitos’ de membros do Estado, lhes aparentando como parte dele, gerando em sua consciência uma unidade orgânica. A lei é a mediação entre o cidadão e o Estado.
É absolutamente comum entre os representantes do Estado a defesa da‘legalidade’. Numa total demagogia, a defesa das instituições e leis escondem os reais interesses daqueles que realmente dominam o Estado: a perpetuação dos privilégios e a defesa da propriedade. Mesmo que num determinado momento parte da burocracia e outras estruturas do Estado estejam ocupadas por parcelas da sociedade civil, isso não muda sua essência.

A RESOLUÇÃO DO ESTADO

            Separados do ESTADO, os que produzem as riquezas (trabalhadores, a maioria da sociedade) devem se organizar para não apenas democratizá-lo, pois, sua natureza é oposta à democracia. Para tanto, devem tomar consciência dessa estrutura, constituir-se enquanto partido político, tomar o poder, organizar a economia para finalizar a propriedade privada dos meios de produção, socializando assim a riqueza, e só assim, eliminar toda essa estrutura.
            No apêndice do livro, Marx nos dá belíssimos ensinamentos históricos e combate quaisquer idéias de reformas sociais. Primeiro, sobre a forma de fazer, na paz ou na luta:
            “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a critica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo pode material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas”. (pag157)
            Segundo, sobre qual classe pode acabar com as injustiças e agruras:
            “Na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma sociedade civil que não seja classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um titulo histórico, mas apenas o titulo humano...que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as esferas da sociedade, com isso, emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado”. (Pag 162)
            Terceiro, qual instrumento para a crítica das idéias:
            “Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra suas armas espirituais na filosofia, e tão logo o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente nesse ingênuo solo do povo, a emancipação se completará”. (Pag 162)
              
*Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Boitempo Editora, 3ª. Edição, maio 2013;
** Constitui uma forma de estratificação social com camadas mais fechadas do que classes sociais, e mais abertas do que as castas;

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