Atualmente,
muitos estão escandalizados com o grau de descumprimento de vários preceitos
constitucionais, os excessos jurídicos, a grave situação da democracia, o
aumento da repressão policial entre outras preocupações existentes na sociedade
brasileira. Por trás delas, uma verdadeira ‘fé’ no chamando ‘Estado Democrático
de Direito’, nas instituições republicanas que temos e nos princípios legais
conquistados pela nossa última ‘Carta Magna de 1988’, a Constituição Cidadã,
como é conhecida.
Por outro lado, os ortodoxos
defensores da ‘legalidade’ creem que a atual ordem jurídica do Estado
brasileiro pode se resolver com modificações no aparelho estatal, impondo um
regime rigoroso de controle, disciplina e investigação permanente,
particularmente sobre as organizações políticas e seus representantes eleitos
sob a palavra de ordem: ninguém está acima da lei! As elites, os corruptos e
seus partidos que governam (mesmo aqueles que se venderam aos ricos
empresários), se arrogam em atacar as perseguições
e mitificar as instituições democráticas, tendo utilizado todas as artimanhas
para se beneficiar da posição privilegiada que ocupavam (e ainda ocupam a
imensa maioria deles) nos altos escalões
da república.
O entendimento mais profundo desse
debate é encontrado na obra marxista “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel”,
escrito em 1843. À época Karl Marx renunciava as visões hegelianas,
criticava-as, e formatava uma concepção profunda sobre a sociedade. Sua visão
era extirpar todos os preconceitos religiosos e míticos existentes no
pensamento filosófico alemão a partir do modelo dialético hegeliano, resultante
da crítica à metafísica anterior. A obra arranca de Hegel toda uma sistemática
concepção do Estado e sua Estrutura, Direito, Estamentos e da Sociedade Civil,
mas lhe impõe uma profunda crítica da visão mítica da sua ‘filosofia
especulativa’, a qual partia do pressuposto de que a ‘IDEIA’, sua evolução, seu
desenvolvimento e suas contradições, etc, moldavam a essência da realidade.
Assim, o pensamento de Marx adquire uma
importância fundamental na crítica às velhas idéias seguidistas, crendices e
míticas de um ‘Estado do Povo’ ou um ‘Estado a serviço de todos’, uma
‘democracia pura’ construída na evolução pacifica apenas dos debates das idéias,
e seus reflexos nas instituições. Nele fica muito clara toda à sua concepção
revolucionária da sociedade. O livro é um verdadeiro passo-a-passo, utilizando
inúmeras passagens do livro ‘Princípios da Filosofia do Direito’ de Hegel,
desmitificando cada parte, bem como reconhecendo os avanços trazidos pela visão
dialética.
A SOCIEDADE
CIVIL, DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
Sempre somos instados a ver no Estado
e seus dirigentes nossos representantes. Pelo fato de serem eleitos, deveriam
pois representar o interesse de todos. Isso ocorre porque existe uma separação
entre a Sociedade Civil (forma organizada do povo não estatal, privado), a outra
organização privada da sociedade, a FAMÍLIA e o aparelho ESTATAL, sua
burocracia e instituições. Hegel entende a Sociedade Civil e a família como
‘partes do Estado’, divididos apenas pelo conceito e não pela realidade como
tal.
Marx afirma: “Família e Sociedade Civil são apreendidas como esferas conceituas do
Estado e, com efeito, como as esferas de sua finitude, como sua finitude. É o
Estado que nelas se divide, o que as pressupõe; e ele o faz, em verdade...A ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o
Estado é apreendida como sua atividade interna imaginaria. Família e Sociedade
Civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos;
mas, nas especulação, isso se inverte”. Mais: “Não é o seu próprio curso de vida (Sociedade Civil e Família) que as
une ao Estado, mas é o curso da idéia que as discerniu de si; e, com efeito,
elas são a finitude dessa ideia; elas são determinações postas por um terceiro,
não autodeterminações”.(Págs 35 e 36)
Em outras palavras, para o
pensamento marxista foi o próprio desenvolvimento interno da organização social
que gerou essa separação e não o desenvolvimento conceitual ou imaginário dessa
sociedade. Essa é sua aparência, reflexo do real. Naturalmente, ao pensar
assim, Marx afirma sobre Hegel “A pura
idealidade de uma esfera real só poderia, contudo, existir como ciência...O
importante é que Hegel, por toda a parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito
propriamente dito, assim como da disposição política, faz o predicado. O
desenvolvimento prossegue, sempre do lado do predicado”. (pag 38)
Posteriormente, em outras obras, Marx
prova que o processo de separação entre sociedade civil, família e Estado se
deu no processo do desenvolvimento da vida econômica, nas suas contradições
internas. O produto conceitual é resultado, naturalmente, disso, e não o
inverso. As instituições políticas são produtos passivos da sociedade,
resultantes das lutas sociais e das forças delas resultantes. Ao mesmo tempo,
Marx acrescenta um imenso avanço trazido pela concepção helegiana, a concepção
‘ORGÂNICA’ do Estado, pois mesmo considerando um desenvolvimento ideário, Hegel
toma esses aspectos num todo: “é um grande progresso tratar como organismo”.
Em geral, se toma os interesses gerais
do Estado como os interesses da sociedade (família e sociedade civil), ou o que
se chamaria de interesse público. Isso não passa de uma ilusão. O Estado,
separado dos demais, é produto das inter-relações sociais (contraditória e
divida tão quanto à propriedade privada em seu seio) e seu desenvolvimento, é,
pois, apenas uma visão aparente, superficial, não completa. Na realidade, os
dirigentes não podem representar senão tais contradições, as quais devem ser
resolvidas dentro da própria sociedade numa intensa Luta de Classes.
Outra das formas de mitificação do
Estado está a Constituição Política e a ideia de Democracia. Hegel pretende,
com a ciência jurídica e sua evolução conceitual, dar à Constituição
Democrática (mesmo que no caso, ele a veja mesmo numa monarquia) um meio de
moldar o conjunto dos estamentos* sociais.
Numa passagem irônica, combatendo essa
concepção, Marx afirma: “A democracia, em
um certo sentido, está para outras formas de Estado como o cristianismo para
as outras religiões. O cristianismo é a religião, a essência, o homem deificado
como uma religião particular. A democracia é assim, essência de toda
constituição política. O homem socializado com uma constituição particular é;
ela se relaciona com as demais constituições como gênero com suas espécies, mas
o próprio gênero aparece aqui como existência e, com isso, como uma espécie
particular, em face das existências que não contradizem a essência. A
democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com o seu
velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão
do homem; e a existência humana, enquanto as outras formas de Estado como com o
seu velho Testamento... a constituição política foi reduzida à esfera
religiosa, a religião da vida do povo, o céu da sua universalidade em
existência terrena de sua realidade”. (Pag
56 e 57)
Nesse importante raciocínio, fica claro
que a ideia de uma Democracia no âmbito do Estado, é uma ficção. Não se pode
existir ‘governo do povo’, pois, sendo um regime do Estado, esse é separado do
povo. Na essência do estado está a separação, e só pode ser resolvida numa nova
organização social em que o Estado deixe de existir enquanto tal. Até isso
ocorre, a constituição democrática não passará de uma Bíblia para os crentes da
democracia.
BUROCRACIA E
PODER
Hegel atribui papel destacado à
burocracia na administração do Estado. O exercício do poder, para ele, estaria
liberto de excessos, se existisse uma ética nos representantes do Estado. Seria
a função pública um ‘dever’, a vocação dos funcionários do Estado. Ao mesmo
tempo, o exercício do direito das ‘corporações’(organismos de administração
próximas da população) e uma rigorosa hierarquia estatal sob a tutela do poder
soberano do monarca serviria para impedir “aristocracia e a dominação”.
Explicando o pensamento hegeliano, Marx
afirma: “ A burocracia é o formalismo da
sociedade civil. Ela é a ‘consciência do Estado’, a ‘vontade do Estado’, a ‘potência
do Estado’...a burocracia deve, portanto, proteger toda a universalidade
imaginaria do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a
particularidade imaginaria do interesse universal, seu próprio espírito” (pag
70). Mais: “Hegel nos dá uma descrição
empírica da burocracia, em parte como ela realmente é, em parte segundo a opinião
que ela tem de seu próprio ser”. (Pag70)
A concepção marxista desconstrói todo o
mito de uma burocracia a serviço do povo. Embora reconheça o papel de serviços
essenciais à vida da população, por serem instrumentos ‘públicos’ do Estado,
não passam de ilusórias no sentido de escamotear a separação completa entre a
sociedade e o próprio Estado.
Afirma: “A burocracia é o Estado imaginário ao lado do Estado real, particular,
o espiritualismo do Estado...Por isso o espírito público do Estado, assim como
a disposição política aparecem para a burocracia como uma traição do seu
mistério. A autoridade é, portanto, o principio de seu saber e o culto à
autoridade é a sua disposição”. (Pag72). “A supressão da burocracia só pode se dar contanto que o interesse
universal se torne realmente – e não, como em Hegel, apenas no pensamento, na
abstração – interesse particular, o que é possível apenas contanto que o
interesse particular se torne universal.” (Pag 73)
É importante ressaltar que aqui Marx
trata de toda legião de funcionários, em todos poderes da república, e
estruturas de poder vinculadas ao poder centralizado. É como se fosse uma ‘capa
protetora’ de uma estrutura erguida sobre a autoridade dos dirigentes, numa
hierarquia concreta, para submissão imposta aos membros da sociedade. Não é da
essência do ESTADO a proteção dos cidadãos, é, pois, o seu controle e imposição,
tendo assim que constituir um conjunto de instituições burocratizadas e
racionalmente constituídas, uma aparência diferente do que ele é realmente. O
fim último é o poder!
Para o exercício do poder e atribuições
fins do Estado, ou nas palavras de Marx, para a defesa da “propriedade privada como a categoria universal , o liame Universal do
Estado” (pag130), é preciso um conjunto de leis, que, regulamentam a vida
social, passam a ter uma vida ‘espiritual’ própria, parecendo estar acima da
própria sociedade. Essa lei garante aos cidadãos os ‘direitos’ de membros do
Estado, lhes aparentando como parte dele, gerando em sua consciência uma
unidade orgânica. A lei é a mediação entre o cidadão e o Estado.
É absolutamente comum entre os
representantes do Estado a defesa da‘legalidade’. Numa total demagogia, a
defesa das instituições e leis escondem os reais interesses daqueles que
realmente dominam o Estado: a perpetuação dos privilégios e a defesa da propriedade.
Mesmo que num determinado momento parte da burocracia e outras estruturas do
Estado estejam ocupadas por parcelas da sociedade civil, isso não muda sua
essência.
A RESOLUÇÃO DO
ESTADO
Separados do ESTADO, os que produzem
as riquezas (trabalhadores, a maioria da sociedade) devem se organizar para não
apenas democratizá-lo, pois, sua natureza é oposta à democracia. Para tanto,
devem tomar consciência dessa estrutura, constituir-se enquanto partido
político, tomar o poder, organizar a economia para finalizar a propriedade
privada dos meios de produção, socializando assim a riqueza, e só assim,
eliminar toda essa estrutura.
No apêndice do livro, Marx nos dá belíssimos
ensinamentos históricos e combate quaisquer idéias de reformas sociais.
Primeiro, sobre a forma de fazer, na paz ou na luta:
“A
arma da crítica não pode, é claro, substituir a critica da arma, o poder
material tem de ser derrubado pelo pode material, mas a teoria também se torna
força material quando se apodera das massas”. (pag157)
Segundo, sobre qual classe pode
acabar com as injustiças e agruras:
“Na
formação de uma classe com grilhões radicais, de uma sociedade civil que não
seja classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos
os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus
sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque
contra ela não se comete injustiça particular, mas a injustiça por excelência,
que já não possa exigir um titulo histórico, mas apenas o titulo humano...que
não pode se emancipar sem se emancipar de todas as esferas da sociedade, com
isso, emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra, a perda
total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho
total do homem. Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado”.
(Pag 162)
Terceiro, qual instrumento para a
crítica das idéias:
“Assim como a filosofia encontra
suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra suas armas
espirituais na filosofia, e tão logo o relâmpago do pensamento tenha penetrado
profundamente nesse ingênuo solo do povo, a emancipação se completará”. (Pag
162)
*Crítica à Filosofia do Direito
de Hegel, Boitempo Editora, 3ª. Edição, maio 2013;
** Constitui uma forma de estratificação social com camadas
mais fechadas do que classes sociais, e mais abertas do que as castas;