A
pretensa ideia de reconciliar o pensamento filosófico marxista com a filosofia
clássica alemã, tendo Hegel como seu principal expoente, não faz, de maneira
nenhuma, progredir o marxismo-leninismo, mas o atrasa. Primeiro, por que a crítica a Hegel é peça
fundamental na concepção filosófica marxista. Segundo, pelo fato do atual
momento existirem inúmeros ‘marxistas’ tentando fortalecer uma unidade com
velhas idéias filosóficas, dando ao marxismo revolucionário um caráter eclético
e incompreensível.
Mesmo considerando a importância
para o conhecimento da concepção filosófica marxista, o profundo estudo do
pensamento hegeliano, é necessário ressaltar o que ambos tem em comum e o que,
ao mesmo tempo, tem de diferentes. O marxismo, em filosofia, é a superação do
hegelianismo. Ao mesmo tempo, é produto exatamente dessa crítica.
Resultado da obra de dois grandes
expoentes do pensamento filosófico alemão, Karl Marx e Friendrich Engels, o
materialismo dialético, expõe claramente as limitações da dialética hegeliana. Suas
obras se complementam e harmonizam-se num único corpo teórico. O objetivo do
presente artigo é contribuir para o entendimento do papel da filosofia hegeliana
no pensamento marxista, partindo do pressuposto que, sem uma crítica precisa desta,
também realizada por Ludwig Feuerbach, a concepção marxista não poderia ter
existido.
A CRÍTICA DA
FILOSOFIA ESPECULATIVA
A filosofia busca conhecer a
realidade como tal, desmitificando-a através do aprofundamento do conhecimento.
Há a busca incessante de saber O QUE É, ou, o SER. Tal ideia atravessou toda a
história da filosofia ocidental, pois conhecê-lo significa também SABER.
A Lógica Hegeliana parte do pressuposto,
que o SER é o ‘começo’, ‘puro pensamento’, não ‘pode ser determinado por outra
coisa tampouco pode ter determinação em si’. Não pode ter ‘fundamento’. Tal
ideia dá ao ‘absoluto’ uma qualidade criadora e que determina todas as outras
coisas. Esse, por sua vez, ‘começo abstrato’.1
Ao considerar o SER como o absoluto, não
tendo conteúdo, produto do pensamento, Hegel
‘inverte’ a realidade, dando ao ‘puro pensamento’ vida própria, podendo
assim, a filosofia reconhecer o mundo não como ele é, mas como o movimento do
pensamento nos apresente. O SER para Hegel só existe, assim, no pensamento, na
ideia. Negando-o, temos o NADA, que pode se dizer o que é. Estes, num movimento
permanente e ininterrupto “do abstrato ao concreto, do ideal ao real”2. O VIR-A-SER é a realidade objetiva pensada,
refletida, determinada do movimento do SER.
Diferentemente, para Marx e Engels, o
SER não é uma totalidade ou absoluto, da qual tudo passa dela a depender ou a
ela submetido. Não é indeterminado, pois possui uma determinação histórica,
passageira, efêmera, mas verdadeira, mesmo que temporariamente. Daí que na
concepção dessa ontologia3, não
existir no pensamento marxista uma definição apenas na abstração do que é o
SER. Pensar é, mesmo que sobre o SER, predicado, o SER é objeto. A realidade,
para Marx e Engels, é independente da ideia (existe fora do pensamento) que
temos sobre ele, embora só o conheçamos quando o negamos, num processo
permanente e ininterrupto.
Para a Dialética Materialista, a
não-determinação do SER, torna a Dialética Hegeliana, mesmo racional e
estruturada num Método enganador da realidade, pois se ao dizer o que é sobre
algo, o mesmo só existe pelo movimento que o pensamento realiza sobre ele, não
passa, assim, de ESPECULAÇÃO. Em resumo, o materialismo dialético reconhece o
processo absolutamente importante da negação abstrata no pensamento, mas essa
negação existe antes e primeiro fora do pensamento, pois só é pensada porque é
independente dela, não o contrário. Ou, em outras palavras, pensamos sobre as coisas (a negação e o
movimento delas) porque elas existem e estão em contradição na realidade antes
de estarem no pensamento.
Assim,
nas palavras de Marx:“De um lado Hegel
sabe representar o processo pelo qual passa de um objeto a outro através da
intuição insensível e da representação, com maestria sofistica, como se fosse o
processo do mesmo ser intelectivo imaginado, do sujeito absoluto. Mas depois
disso, Hegel costuma oferecer, dentro da exposição especulativa, uma exposição
real através do qual é possível captar a própria coisa. E esse desenvolvimento
real dentro do desenvolvimento especulativo induz o leitor, equivocadamente, a
tomar o desenvolvimento especulativo como se fosse real e o desenvolvimento
real como se fosse especulativo”.(A Sagrada Família, Boitempo Editora, pág 75)
A AFIRMAÇÃO NO
PENSAMENTO HEGELIANO
Por outro, Marx e Engels reconhecem no
hegelianismo a forma do movimento do pensar humano sobre a realidade,
exteriorização, ao abstrair-se dela, dando ao homem autonomia ‘dos espíritos
fixos’, pela negação, ‘isto é suprasunção desta exteriorização’, efetiva
externalização do pensar humano. Um grande avanço à filosofia anterior. Por
isso, o movimento racional e lógico do pensamento hegeliano possibilitou uma
crítica da filosofia anterior e, mais do que isso, deu ao ‘vir-a-ser’ um papel
destacado.
Diz Marx, “O positivo que Hegel aqui conseguiu – na sua lógica especulativa – é
que os conceitos determinados, as formas do pensamento universais fixas, em sua
autonomia diante da natureza e do espírito, são um resultado necessário do
estranhamento universal da essência humana, portanto também do pensar humano e,
que, Hegel os apresentou e reuniu, por isso, como momentos do processo de
abstração”. (Manuscritos Economico Filosóficos, Boitempo editora, pág 135)
Ao mesmo tempo, a ideia da suprassunção
ou tornar-se algo novo pela negação contraditória existente, o qual possui o
seu passado ora negado ainda presente, que também será posteriormente vencido
num fluxo permanente, dá ao ser humano uma nova perspectiva para
instrumentalizar o conhecimento. O homem passa a questionar a realidade, mesmo
que em Hegel num movimento puramente abstrato, e também a acreditar na sua
capacidade de conhecer o mundo, desmitificando-o. Abre-se uma nova perspectiva
para a Filosofia.
Afirma Marx: “O supra-sumir como movimento objetivo retomando de volta em si a
exteriorização (Entausserung) – É este juízo (Einsicht), expresso no interior
do estranhamento, da apropriação do ser (Wesen) objetivo mediante a
suprassunção de seu estranhamento, o juízo estranhando na objetivação efetiva
do homem, na apropriação efetiva de seu ser objetivo, mediante a eliminação da
determinação estranhada do mundo objetivo, mediante sua supra-sunção na sua
existência (Dasein) estranhada”. (Manuscritos Econômico Filosóficos, Boitempo editora, pág 135).
Embora pareça apenas um jogo de
palavras, fica expresso nessa passagem o modelo ou forma (Método esse
sistematizado por Hegel) de conhecimento adotado pelo Materialismo Dialético
para conhecer a realidade, tomando-a em primeiro lugar. Lembremos que a obra
acima citada possui tanto a afirmação quanto à crítica ao pensamento hegeliano.
O SER HUMANO,
DETERMINAÇÃO E AUTOCONSCIÊNCIA
Em virtude de não existir uma
dissociação do método e conteúdo na filosofia marxista (mesmo admitindo-a
formalmente para fins didáticos) a natureza da filosofia hegeliana, é idealista
e especulativa. Por isso, não evoca o papel transformador humano como sendo o
caminho objetivo da reflexão filosófica. Embora representando um avanço em
relação à filosofia conservadora anterior, Hegel constrói uma concepção que torna
a Filosofia num fluxo supervalorizado da abstração. A consciência, mesmo
entendida no ‘Devir’ (movimento da transformação interior), pretende ser
independente da realidade, tendo como substancia a própria estrutura e forma do
pensamento, ou o ‘saber absoluto’. O movimento da consciência, mesmo que num
fluxo contínuo de externalidade-internalidade, é substancialmente
autoconsciente e o papel do sujeito é passivo.
O pensamento de Marx e Engels,
produto também da Crítica de Feuerabach sobre a Dialética Hegeliana, tornou-se
uma forma de conhecimento sobre a realidade capaz não apenas de interpretar o
mundo, mas também de modificá-lo. O sujeito pensante não é produto da abstração
dele próprio ou da ‘verdade absoluta’, mas, ao contrario, resultado do mundo
real, negado a partir do seu mundo subjetivado, o qual se encontra consigo
mesmo, para negar seu papel, construindo sua história, e ao mesmo tempo, sua
consciência. Nela, o homem é sujeito ativo, mesmo determinado historicamente, e
não produto da sua autoconsciência.
Marx afirma: “Hegel faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da
autoconsciência a autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto,
vive também em um mundo real, objetivo e se acha condicionado por ele. Ele vira
o mundo de ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver tanto na cabeça todos os
limites, e isto os faz, naturalmente manter-se de pé para a má sensoriedade,
para o homem real. Alem do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia
a limitação da autoconsciência geral, toda a sensoriedade, a realidade e a
individualidade do homem e de seu mundo” (A Sagrada Família, Boitempo Editora,
pág 215) -
Por fim, em virtude dessa concepção
sobre o ser humano, seu conhecimento sobre si mesmo, a filosofia de Hegel entra
numa contradição. Ao negar todo dogmatismo anterior e reconhecendo a possibilidade
de conhecimento do mundo através da ciência, a sua dialética concebe, na essência,
um espírito absoluto. Seu começo, ser
puro, indeterminado, interno do seu sistema de pensamento passa a ter, assim,
vida própria, necessitando de nele mesmo acreditar sem uma razão própria de
ser.
Nas palavras de Engels: “Com isso, porém, proclama-se como verdade
absoluta todo o conteúdo dogmático do sistema de Hegel - o que está em
contradição com seu método dialético que se opõe a todo dogmatismo. Assim, o
lado revolucionário da doutrina de Hegel morre asfixiado pelo seu lado
conservador.” (Ludwig Feuerbach e o
fim da Filosofia Clássica Alemã, Editorial "Avante!" -
Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.)
1-
HEGEL,
Georg W. Friedrich. Ciência da Lógica.Editora Barcarolla. 2011.
2-
KONDER.
Leandro, O futuro da filosofia da Práxis. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1992
3-
Estudo
do Ser no seu sentido abrangente
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